Para ouvir:Sono profundo - Fresno
Acordou com dor de cabeça. Demorou alguns instantes para perceber onde estava - na sua casa, graças aos céus.Levantou devagar e a tontura veio.Deitou na cama de novo.A boca tinha um gosto amargo e ela estava com sede.Se mexeu um pouco na cama e percebeu que não estava sozinha.E ai o desespero bateu.Mil nomes vieram na sua cabeça, mas nenhum a agradava.Porém um nome surgiu com um flash da noite passada, e demorou um pouco até ela ter coragem de olhar para o lado e confirmar a suspeita.
Lá estava ele. Com o cabelo bagunçado e sem camisa.A pele branca exibia seus mil desenhos e tinha cheiro de cigarro com vodca.E ai ela pensou "meu Deus, por que ele? Entre tantos outros bilhões de caras com quem eu poderia ter acordado hoje, porque logo com ele?Tem o vizinho do apartamento do lado, que sempre vem pegar algo emprestado.E dai que ele é casado? Porque não ele?"
Levantou devagar, um pouco com medo da tontura e um pouco com medo dele acordar. Enquanto fazia xixi, vasculhou um analgésico na gaveta do banheiro.Encontrou um e algo para prender o cabelo.
Se olhou no espelho e viu que não tinha concerto: O cabelo estava duro pelo laquê da noite anterior e as olheiras de sombra preta (de deveriam estar piores graças ao suor da boate e da cama) estavam quase chegando a sua boca - que alias, estava com resto de batom vermelho, daqueles que só sai com água benta e reza.
Tomou o analgésico e entrou no banho. A água quente e o vapor pareceram levar a dor de cabeça para o ralo junto com os kilos de maquiagem que restavam da noite anterior.Demorou mais do que o necessário no banho - quem liga para aquecimento global e todo esse blábláblá?-, enxugou o cabelo, passou corretivo nas olheiras e saiu do banheiro.
Ele ainda não tinha acordado. Ela se viu pensando em jeitos de tira lo do apartamento sem ele acordar.Percebeu que seria impossível, então foi para a sacada fumar um cigarro e respirar ar puro.Na terceira tragada do cigarro sentiu um chute na boca do estomago, e percebeu que álcool ainda provocava a mesma reação.Voltando do banheiro ainda um pouco verde, deu de cara com um olhar preocupado.
- Você ta bem?
-To ótima. Agora que acordou pode vestir tua roupa e sair daqui.
-Você não muda nada mesmo né?
-Gosto de mim assim.
- Eu também.
-Não lembro de ter perguntado. Agora anda, te veste e tchau.
-Ai pequena - ele disse levantando da cama e vestindo a regata branca - eu tava até com saudade desse teu jeito.
O enjôo voltou e mais uma vez ela teve que voltar ao banheiro. Ainda debruçada na bacia o ouviu abrindo a porta e saindo. "Que ótimo" pensou, "isso só facilita as coisas pra mim.”.
Quando sentiu que o estomago voltara ao lugar levantou e escovou os dentes. Foi cambaleando até a cama, onde encontrou uma garrafa de água do lado da sua cabeceira (uma mania antiga de sempre ir pra cama com alguém com uma garrafa de água junto) e tomou um gole.Ligou a televisão e ficou deitada, pensando se ele realmente tinha ido embora.Torcia que sim,pois isso facilitaria tudo, mas no fundo, bem lá no fundo, algo ainda gritava a necessidade dele voltar e cuidar dela.Mas ela não estava disposta a ouvir nada que estivesse gritando - sempre odiou gritos.
Pegou no sono, mas acordou com a porta batendo. Ele tinha voltado e não estava 'sozinho'.Estava com uma mochila um pouco cheia nas costas e a bag do violão nas mãos.
Ela resolveu fingir que ainda estava dormindo - quem sabe assim ele não ia embora. Ele se sentou do lado dela e enxugou o suor de sua testa com as costas das mãos.
- Eu sei que você não ta dormindo. Trouxe remédio pro seu estomago.
Ela continuou com os olhos fechados.
- Pequena, quando você dorme, seus olhos não ficam tensos assim. Toma o remédio pra algo começar a parar no seu estomago logo.
Ela desistiu e sentou-se na cama. Tomou o remédio e ficou olhando aqueles olhos castanhos que diziam tanta coisa que ela não estava disposta a ouvir.
- Sabe - ele disse - nunca vou entender o porquê você não gosta assim de mim.
- Já te expliquei MIL vezes.
- Não entendo a tua teoria então. Vou guardar minhas coisas e já volto.
- Coisas?
-É. Vou ficar aqui cuidando de você.
- Eu sei me cuidar sozinha.
-Eu sei que sabe. Mas é sempre bom ter algum pra limpar teu vomito quando você precisa.
Ele saiu para fumar na varanda e ela já estava sentindo o efeito que ele provocava. O efeito que ele provocava era aquela vontade de segurar e falar 'fica aqui comigo, não vai embora não?”“. Mas ela não queria.Tinha sido assim há tempos atrás e não tinha ganho nada com isso.Então, suprimiu os sentimentos e a meiguice bem dentro dela, o máximo que pode.E fica muito bem assim, de verdade.A única pessoa que fazia ela ter vontade de mudar tudo isso era ele.Ele era tão perfeito e bom , que trazia tudo o que ela tinha de melhor a tona.Coisas que ela não sentia a tanto tempo e ele fazia parecer tão natural sentir.Natural e bom.Por isso, tudo que ela queria naquele momento era que ele fosse embora.Ou não.
Acordou horas mais tarde com uma melodia conhecida vindo da varanda. Respirou fundo e constatou que o estomago já estava melhor , então se levantou e foi até a cozinha.
- Tem suco pronto pra você na geladeira pequena.
Respirou fundo. Porque ele fazia isso? Cuidar tanto de alguém assim é desumano. Porque ai depois a pessoa vai embora e você demora décadas pra aprender a se cuidar sozinha de novo.
Pegou um copo do suco e tomou um gole pequeno. Não sentiu ânsia, então estava melhor mesmo.Abriu o armário e pegou algumas bolachas para beliscar.Foi até a varanda e ele estava lá, sentado no chão tocando aquela música tão conhecida.
- Ela é linda.
- Você é linda.
- Hum.
- Você sabe que ela é tua né?
- Não fui eu quem escreveu - disse com pouco caso.
- Mas é tua. Pra você.
- Hum.
Ficou fitando o nada esperando o nó na garganta sumir. Ela queria mesmo era correr para o colo dele e chorar até toda essa mágoa que mora dentro dela ir embora, e voltar a ser a menina doce que era antes.Mas não podia.Ninguém nunca ganha nada sendo assim.
- Posso dormir aqui hoje?
- Não.
- E se você passar mal à noite?
- Vou para o hospital.
- Como vai conseguir dirigir vomitando?
- Pego um táxi.
- Tem certeza?
- Absoluta.
-Então ta.
Levantou e guardou o violão na bag. O coração deu quase rasgou o peito e o agarrou, gritando "Não vai!Volta aqui! você é minha única salvação menino!" mas ela o segurou firme.Acompanhou com os olhos enquanto ele colocava a camisa dentro da mochila e pegava o maço de cigarro em cima da mesa.
- Você vai ficar bem mesmo?
- (Não) vou.
- Tem certeza?
- (Não) sim.
- To indo embora então ta?
- (não vai... fica mais um pouco, por favor) aham.
Foi até ela e a deu um beijo na testa. Sorriu um sorriso triste.
- Até mais, pequena. Melhora.
- (Me liga. Aparece aqui amanhã. HOJE. Dorme aqui comigo, por favor. Me faz esse suco de novo amanha de manha. Me deixa tua camisa pra eu dormir com teu cheiro pelo menos) Obrigada. Vou ficar bem.Sempre fico.
- Qualquer coisa me liga ta? Qualquer coisa mesmo.
- (Fica) aham.
Enquanto a porta fechava, ela ainda sentada na varanda observava de canto de olho ele indo embora. Era melhor assim.Se ele ficasse mais 5 minutos ela não agüentaria.Enquanto uma lágrima escorria pelo rosto, ela se levantava para seguir a vida.Ninguém nunca ganhou nada chorando.
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