Páginas

5.7.12

Aquele dos livros.

 Para ouvir: Onze dias - Los Hermanos

E ai você entra, como quem não quer nada, com a mochila do lado esquerdo do corpo, com aquele sorriso só teu e o xadrez surrado que eu tanto amo. Passa por mim cantarolando Coldplay e com cheiro do primeiro cigarro light fumado logo pela manhã, e não me cumprimentou.Talvez não tenha me visto.Talvez finja que não tenha me visto, ou talvez seja porque nunca me cumprimentou mesmo.O problema é que agora não importa do que esteja falando o livro que eu estou lendo, se é sobre a segunda guerra mundial, ou sobre Maria Antonieta, ou sobre minha vida: você está na sala.Porque por algum motivo a vida tem dessas coisas, entre tantas salas de estudo nessa universidade, você escolheu entrar logo na minha.Não fazemos o mesmo curso (Deus me livre de exatas), não temos amigos em comum, não fumamos o mesmo cigarro, mas mesmo assim, entre tantas salas, você foi escolher logo a minha pra se aconchegar no divã de coro velho e ler livros (muito bons, por sinal) enquanto toma café e ouve música.O que me deixa na confortável situação de estar com você sozinha, já que ninguém gosta dessa sala, o que no fundo nunca vou entender o porque, já que é a única que bate sol e tem vista pra rua.Ninguém nunca gostou e eu estava acostumada a ficar sozinha aqui por muito tempo, até que em um dia cinza e com uma garoa fina você entrou, um pouco sonolento, tirou o gorro da cabeça, a jaqueta e perguntou “posso ler aqui?” e eu nem consegui responder, só acenei com a cabeça de um jeito meio atrapalhado (se é que se pode balançar a cabeça de um jeito atrapalhado) e você deve ter achado que eu tenho algum tipo de problema.E pronto.Naquele dia você não ficou muito tempo, e eu fui embora pedindo pra Deus que eu não te visse nunca mais, porque sabia, do fundo do meu coração e dos teus olhos esverdeados, que você era encrenca.Mas ai você voltou no outro dia, e talvez e no outro, e volta desde então.Pelo menos, sempre que eu estou aqui.
Um dia você não veio e eu fiquei preocupada. Pensei em ir na mocinha que fica na recepção pra perguntar se tinham seu telefone, ou qualquer coisa do tipo pra eu ligar pra saber se você estava vivo, bem, morando na mesma cidade.Por que sei lá, vai que aconteceu alguma coisa.Mas desisti, porque achei que você ficaria com medo de mim e nunca mais iria ler na minha frente.E ai você voltou no outro dia e eu pensei em dizer ‘senti tua falta’ ou ‘que bom que está vivo’, e fiquei ensaiando dizer isso todo o tempo que você ficou lendo na minha frente, mas ai, entre uma linha e outra do meu Caio Fernando, você fechou seu John Fante e foi embora, sem me dar tempo nem de tomar coragem e falar (gaguejar) alguma coisa.
E desde então minha média de livros lidos por semana diminuiu, já que por sua causa, eu tenho que ler a mesma coisa quatro vezes para entender. Sabe, eu costumo fazer uma bolinha no final de cada página, para saber onde parei de ler.E cada vez que tenho que ler de novo porque não entendi, faço outra.Contei 18 bolinhas em uma das páginas de um dos livros.Essa que eu to lendo agora, está com 7.
Agora eu tenho que ir embora. Fecho meu Vladimir Nabokov (10° vez que tento terminar de lê-lo) e arrumo a bolsa. O sol tá começando a ir embora, e lá fora tá tudo laranja. Eleanor Rigby toca no meu ouvido e eu respiro fundo (sentir seu perfume pela ultima vez). Coloco o livro na bolsa e passo por você, me despedindo com o olhar que encontra o teu.A música para na hora e você sorri.Eu sorrio também (me sai melhor nisso do que pensava).Você tira os fones de ouvido e eu quase não ouço quando você diz “Você não veio ontem ruiva.Que bom que está viva.”.
 Eu volto e só digo "estava com preguiça de vir.Até amanhã".Você sorriu e voltou a ler.Eu fui embora e voltei a sonhar.

Nenhum comentário: